Senhor dos Milagres Escravo de Angola, Cristo do Mundo
Em Outubro, o Peru veste-se de roxo. Espera a saída do Senhor dos Milagres do Mosteiro das Nazarenas, em Lima. O culto remonta a 1651, quando um escravo angola pintou a imagem que inspirou aquela que é, provavelmente, a maior e mais fervorosa procissão católica em todo o mundo.
Abrem-se as portas do Mosteiro das Nazarenas. Um arrepio profundo percorre a Avenida Tacna, no centro histórico de Lima. O fumo de centenas de incensários turva a vista, o ambiente arde em fé de carvão em brasa. Uma fanfarra - trombones, trompetas, tambores, pratos - modula o ambiente. A capital do Peru suspende a respiração, olhos postos na entrada do enorme templo de onde sai cadenciado, aos ombros de homens vestidos de roxo, o andor com a pintura de um Cristo negro.
Mulheres desatam em pranto, milhares batem palmas, estendem as mãos, atiram flores. “Señor de los Milagros, aquí venimos en procesión” - vozes ásperas de velhas senhoras de véus brancos e rendilhados, em cântico antigo. Voam tiras de papel, brancas e roxas, pelo céu da velha Cidade dos Reis. É Outubro em Lima. O Senhor dos Milagres está nas ruas.
A procissão do Cristo Negro, reivindicam os peruanos, é a maior da religião católica. Os Papas João Paulo II e Bento XVI renderam-lhe homenagens. “Vejo a imagem do Cristo dos Milagres, que belo é!”, exultou o Papa Francisco em Outubro do ano passado, em plena Praça de São Pedro.
Catedrais icónicas - Notre Dame, em Paris e Saint Patrick, em Nova Iorque - abrem-lhe as portas de par em par. Milhões de pessoas em mais de 260 cidades de todo o mundo alimentam o culto, difundido por imigrantes do Peru organizados em 140 irmandades. “Onde há um peruano, aí está o Senhor dos Milagres”, resume Manuel Orillo, Mordomo da Irmandade do Senhor dos Milagres (ISM) das Nazarenas.
A história do também chamado “Cristo Roxo”, a cor que representa esta devoção, é tão insuspeita como antiga. Em 1650, Lima ainda não se chama Lima. É a Cidade dos Reis, capital do Vice-Reino do Peru, colónia espanhola. Habitam-na 27 mil almas. Metade é de origem africana.
Em Pachacamilla, um bairro afastado do centro da pequena cidade, vivem “escravos angola”. Já convertidos ao catolicismo, organizam-se numa confraria. Um ano depois, um dos seus membros, o escravo que a tradição baptizou de “Benito”, pinta numa parede de adobe a imagem de Cristo Crucificado. Cruz solitária, Jesus de olhos fechados, cabeça caída, e uma cidade em pano de fundo. A imagem da Confraria de Pachacamilla permanece anónima e “angolana” durante os quatro anos seguintes.
Senhor dos Terramotos
Sábado, 13 de Novembro de 1655. Um violento sismo sacode e destrói Lima. No meio dos escombros de Pachacamilla, a surpresa: o frágil muro de adobe com a imagem do Cristo negro permanece de pé. A notícia do “milagre” ecoa pela cidade em ferida aberta e institui um novo culto. Às sextas-feiras à noite, “os escravos angola passam a venerar o seu Cristo com flores, velas, incenso, danças e cânticos africanos”, conta à Austral o Mordomo da ISM de Roma, Julio Molina.
O alvoroço alerta as autoridades de Lima, que, em 1671, mandam destruir a pintura. Nunca conseguiram. Relata Julio Molina: “As duas primeiras pessoas que tentaram apagar a imagem começaram a tremer de forma inexplicável. Ao subir ao escadote, um soldado viu a figura de Cristo transfigurar-se e paralisou-se.” A ordem de destruição é revogada e Pedro Fernández, então Vice-Rei do Peru, manda construir uma capela no local. A 14 de Setembro desse ano, realiza-se a primeira missa em honra do “Santo Cristo dos Milagres ou das Maravilhas”.
Dois sismos mais, a 20 de Outubro de 1687 e a 28 de Outubro de 1746, cimentam de vez a crença no também conhecido por “Senhor dos Terramotos”. Enquanto Lima cai por terra, o muro do Cristo de Pachacamilla permanece indestrutível. A fé vira maremoto. Depois do abalo de 1687, por ordem do então mordomo da ISM, Sebastián de Antuñano, uma réplica a óleo da imagem pintada por Benito sai às ruas em procissão. Em 1715, Lima eleva o Senhor dos Milagres a seu padroeiro protector.
Nos séculos seguintes, o culto dos escravos de Angola muda o Peru.”A cultura africana deu-nos uma forma diferente de expressar-nos e de sentir a vida. Proporcionou-nos uma visão menos trágica da religião”, atira o antropólogo da Pontifícia Universidade Católica do Peru, Alexander Huerta, no documentário “Festividade do Senhor dos Milagres”. E conclui: “Um Cristo negro uniu-nos como povo, de uma forma que nenhum outro personagem na história do país conseguiu fazer, e isso diz muito sobre a identidade inata do Peru.”
Incas, Angolas e Jesus
Quando os espanhóis chegaram ao actual Peru, encontraram a 40 km da actual capital do país um santuário dedicado ao deus inca Pachacámac. Entidade que estaria na origem do nome do bairro de Pachacamilla, nos arredores de Lima, onde se instalaram alguns indígenas no século XVI.
Com o tempo, os índios foram substituídos nas hortas da região por escravos angola. Curiosamente, assim como o deus inca que deu o nome ao bairro, o Senhor dos Milagres pintado pelo escravo Benito também tinha o poder de controlar os movimentos telúricos.
Para o antropólogo Juan Ossio, em entrevista à TV Peru, as similaridades das duas histórias “são exemplo do sincretismo” entre culturas de três povos - incas, angolas e hispânicos.
Outubro roxo
Padroeiro do Peru desde 2010, o Senhor dos Milagres percorre Lima a cada dia 18, 19 e 28 de Outubro. O cortejo sai às ruas às 7 da manhã e recolhe por volta das 2 da madrugada do dia seguinte. Pelo caminho, passa por hospitais e é reverenciado pelo Presidente da República, pelo Congresso do Peru e pelos Militares.
O Mosteiro das Nazarenas é o ponto central da celebração. As madres, Carmelitas de Pés Descalços, são as guardiãs dos símbolos do Senhor dos Milagres - o muro original, a figura pintada a óleo que sai às ruas e o andor. Na origem desta congregação de zeladoras, está Antonia de Espíritu Santo, madre equatoriana que se vestia de roxo, simbolizando a paixão de Cristo.
O hábito de Antonia criou uma enorme e roxa tradição. Julio Molina, mordomo geral da Irmandade do Senhor dos Milagres (IMS) em Roma, testemunha que ” há mulheres que usam o hábito roxo durante todo Outubro e alguns homens põem uma gravata roxa”. E até o Alianza Lima, um clube de futebol nascido num bairro negro da capital, “em Outubro troca o equipamento normal por um roxo “, acrescenta Jaime Arenas, membro da ISM das Nazarenas.
A fé em torno do Cristo Roxo é imensa. Durante as procissões, descreve à Austral o limenho Francisco Roca, “a dimensão espiritual vai muito além do que se possa imaginar”. “Há gente que entra em transe e que segue o andor de joelhos pelas ruas de Lima”, relata. Jaime Arenas explica este sentimento: “Durante horas a fio, envolve-nos toda essa mistura de música crioula com pessoas vestidas com o hábito roxo, o colorido do ambiente de Lima e a fé tremenda de pessoas que vêem esta tradição como algo muito seu.” “O ´velho´, como chamamos carinhosamente ao Senhor dos Milagres, é um pai que sabemos que nos vai cuidar e que nunca nos deixará”, sublinha. E para os cépticos, Jaime Arenas manda um recado em jeito de brincadeira: “Podes nem ser crente, mas estando no meio desta procissão até rezas um Pai Nosso, por via das dúvidas!”
A partir de Santiago de Chile, onde é vice-mordomo da ISM local, Fernando Carrion agrega que “esta devoção popular relaciona-se com uma cultura de encontro onde, sem importar a origem, a condição social, nacionalidade ou profissão, todos partilham um espaço comum de fé no Cristo Negro”. Ou não fosse o Peru, acrescenta à Austral a jornalista peruana Magaly Zapata, “um país católico declarado na Constituição como tal”.
Os milagres do Senhor
A Festa do Senhor dos Milagres não se limita à procissão. À sua volta, há toda uma série de iniciativas, como a famosa Festa Taurina, alheia à Irmandade, considerada uma das mais importantes da América Latina. E há, claro, o famoso torrão da Dona Pepa, “uma cozinheira do tempo colonial que se curou por intercessão do Senhor”, conta o mordomo da ISM de Roma. “Para agradecer-lhe”, continua Julio Molena, “ela preparou este doce que oferecia a cada ano aos mais necessitados ”.
Mas serão estes milagres reais ou ilusão colectiva? “São numerosos os actos de conversão durante as procissões”, defende Fernando Carrión, vice-mordomo da ISM de Santiago do Chile. “No meu caso”, conta Jaime Arenas, “vivi uma história “: “a sobrinha da minha esposa nasceu em estado grave, precisamente em Outubro. Eu rezei ao ‘velho’ para que ela se curasse e comprei um hábito roxo pequeno que pus ao ombro, enquanto carregava o andor. Ela acabou por curar-se. Por isso deram-lhe o nome Milagritos”.
O “crepúsculo feito pedaços”
Conta o Conde de Lemos:
“Dirigimo-nos à Igreja [do Senhor dos Milagres]. Um sacristão torto e hostil, que melhor estaria de lambe-botas no inferno, recebe-nos:
- O que deseja, irmão?
Surpreende-me o parentesco e respondo:
- Queria falar com o Senhor…
- Impossível. Está a comer.
- A comer?
- Você não quer ver o senhor Padre?
- Não. Eu desejo falar com o Senhor dos Milagres.”
A provocação do Conde de Lemos, pseudónimo do jornalista Abraham Veldelomar, numa famosa entrevista ao Cristo Negro em jeito de sátira social e política, diz muito sobre esta relação de “tu por tu” entre os peruanos e o Senhor dos Milagres.
A história, publicada em”La Jornada” a 20 de Outubro de 1915, continua com o repórter à procura do Senhor nas ruas de Lima. Pelo caminho, descreve com ironia q.b., o ambiente da procissão: “A multidão vai-se detendo numa pracita como seres pegados a um tronco. Esta humanidade mestiça e crente começa a ferver como calda de açúcar e mel. O incenso, em forma de vapor, envolve, translúcido, as varandas circundantes e atravessa os fios eléctricos. (…) Nas mãos das moças octogenárias, incensários de filigrana de prata realizam o espiritual prodígio de lançar fumo perfumado (…). A multidão cheia de hábitos roxos e lilases, azuis e negros, parece um crepúsculo feito pedaços.”
Atordoado por esta sinestesia, mal encontra o Cristo Roxo, atira-lhe: “Não te chateiam estes cânticos lamechas? Estas velhas que gritam. Tu, acostumado à música celestial e aos coros dos Serafins!” “Melhor mudamos de assunto…”, evade o Cristo Negro.
Estas “velhas que gritam”, segundo a descrição burlesca do Conde de Lemos, são, nada mais, nada menos, que os grupos de cantoras das Irmandade do Senhor dos Milagres das Nazarenas. Encabeçam o cortejo, entoando cânticos, a maioria de autores anónimos. Atrás, seguem essas “moças octogenárias”. São o grupo das portadoras dos incensários. Queimam resinas aromáticas e especiarias, função antes atribuída às escravas negras.
No centro do “crepúsculo feito pedaços”, o andor. Com mais de 4 metros de altura, pesa cerca de 1300 quilos, 550 dos quais de puro ouro e prata. Foi construído em 1926 e porta a reprodução a óleo da imagem de Cristo crucificado do escravo Benito, à qual foram agregados, ao longo dos tempos, outros elementos - a Santíssima Trindade, a Virgem, a Igreja das Nazarenas e uma figura andrógina, que uns dizem ser Maria Madalena, e outros, o Apóstolo São João.
O andor é carregado aos ombros pelas chamadas “quadrilhas”, grupos de homens vestidos de roxo. As primeiras quatro foram criadas em 1766. Hoje são 20. “A experiência de carregar ‘o velho’ é forte”, assegura o carregador da quinta quadrilha, Jaime Arenas. ” Às vezes tocam-nos o ombro e benzem-se. Uma vez uma senhora levou um filho numa cadeira de rodas e pediu-me que passasse o hábito da criança pelo andor “, conta. “Carregá-lo aos ombros é a minha forma de o levar às pessoas”, assume, por sua vez, Fernando Carrión. Para o vice-mordomo da ISM de Santiago do Chile, a missão das quadrilhas é um ” acto de amor”. Tão simples e perfeito como isso.
Artigo publicado originalmente na revista Austral nº 109.