Violência contra comunidade LGBT+ na América Central
Quando se soltou o disparo
Quando se soltou o disparo, caiu. Na fração de segundo em que a vida se agarrou a um último alento, morreu. Era uma bala anunciada a Thalia Rodriguez. Transexual, ativista hondurenha, pele morena. 46 anos. Assassinato LGBT+ número 402 desde 2009, no país centro-americano de onde todos os anos foge para os EUA, em caravana, um número sem contar de perseguidos pela orientação sexual e identidade de género.
A bala foi direta à cabeça. Na noite de 10 de janeiro, estremeceu as encostas do monte Juana Laínez, em Tegucigalpa, onde se encravam, em pendentes acentuadas, bairros pobres da capital hondurenha. Dias depois de um grupo de homens armados tomar de assalto a pequena casa forrada de madeira e disparar a matar sobre Thalia Rodríguez, um vídeo com uma entrevista da ativista transexual ao site Reportar sin Miedo, semanas antes, repetiu-se uma e outra vez, em loop, nas redes sociais por toda a América Latina.
Cabelo liso caindo atrás dos ombros, camisa às riscas brancas e castanhas acinzentadas, lábios pintados de carmim. Braço apoiado numa mesa com uma toalha de renda branca e uma jarra de flores de plástico. Olhos fixos num ponto alto invisível. Fundo de tábuas brancas em ângulo com uma parede verde. Respondia à pergunta: “Quem é Thalia?”. “Thalia é respeitada. Uma das coisas mais lindas que buscamos nesta vida é amar e ser amada. Que alguém te queira pelo que és. Thalia liberta. Somos fortes, também frágeis e débeis, mas somos implacáveis, somos duras.”
Quando os paramédicos da Cruz Vermelha chegaram ao casebre, a ativista já não vivia. Uma onda de protestos e manifestações varreu de imediato as Honduras. “Justiça!”. Thalia era um símbolo LGBT+ do país, onde há mais de 20 anos encabeçava, junto a outras companheiras, a defesa da comunidade e das pessoas com VIH, doença que contraíra quando se prostituía nas ruas de Tegucigalpa.
Foi precisamente a rutura com este perigoso ciclo de vida da maioria das mulheres trans do país, empurradas para a economia informal, criminalidade e trabalho sexual, que fez de Thalia uma das figuras mais respeitadas na comunidade LGBT+. Foi uma das poucas transexuais que abriu um negócio próprio, uma pequena mercearia no bairro onde vivia e onde também se tornou líder comunitária. A nova vida permitiu-lhe concentrar-se no ativismo social. Nas últimas duas décadas era uma voz forte.
“Thalia saiu da rua, venceu a pobreza e sobrevivia diariamente com o VIH, e mesmo assim o Estado não a protegeu”, lamentou Seidy Irias, dirigente da Rede Lésbica Cattrachas. “Esta era uma morte anunciada”, denunciou também Indyra Mendoza, coordenadora da mesma associação hondurenha. Num país onde a média de vida das mulheres trans não supera os 35 anos, aos 46 anos Thalia era uma resistente, como a própria reconheceu na entrevista a Reportar Sin Miedo. “Sou uma das poucas que sobreviveu. Perdi a maioria dos meus amigos no caminho e tive que enterrá-los”.
Viveu sim, mais que a maioria, mas teve o mesmo final. “Já não resta nenhuma ativista trans da minha geração. Ela era a última. Todas estão mortas: ou porque as assassinaram ou por VIH”, testemunha Indyra Mendoza. “É o fim de uma geração”, finaliza Seidy Irías.
O vídeo em loop. “Enfrentei o mundo desde muito pequena. Com tudo o que me ensinou a vida, aprendi que há momentos para rir, chorar, cantar vitória, para sentir-te derrotada, impotente. De injustiças. Aprende-se de tudo e a ter um equilíbrio ao longo dos anos (…) Sabes que no dia em que tu faltares, vão falar de ti, porque realmente deixaste um legado”.
E assim foi. Hoje, o legado de Thalia resume as muitas lutas da comunidade LGBT+ nas Honduras e em toda a América Latina. Sobre o caixão, as companheiras da ativista relembraram as suas batalhas em defesa dos direitos da comunidade transexual, sobretudo, com quem trabalhava em programas de empoderamento e crescimento pessoal e profissional.
Líder da Associação de Direitos Humanos Cozumel Trans, Thalia foi determinante para garantir o direito de transexuais hondurenhos a medicamentos antirretrovirais e foi grito forte na exigência do reconhecimento da identidade de género nos documentos oficiais do país. Uma das últimas batalhas, comum a toda a comunidade LGBT+ das Honduras, foi um braço-de-ferro com o Estado pelo assassinato de uma mulher transexual durante o golpe militar de há 12 anos.
O vídeo em loop.
A condenação
Em junho de 2009, as barricadas com pneus em chamas e as bombas de gás lacrimogéneo impunham uma nova ordem nas Honduras. Militares tomaram de assalto a residência do presidente Manuel Zelaya. Obrigaram-no a abandonar o país. Foi o primeiro golpe de Estado do século XXI na América Latina.
Os dias seguintes foram tensos, marcados por um recolher obrigatório ameaçador. Sem opção, na noite de 28 de junho desse ano, Vicky Hernández saiu de casa, como todas as noites. A transexual de 26 anos prostituía-se nas ruas de San Pedro Sula, no norte do país. A dado momento, em companhia de duas amigas também transexuais, Michelle Torres e Fergie Alicie, surgiu uma patrulha. Sirenes ligadas, começou a perseguição pelas ruas de uma das cidades mais violentas do mundo. Habituadas aos ataques da polícia, as três mulheres sabiam o que fazer: separaram-se e correram em direções diferentes.
Na manhã seguinte, o corpo de Vicky foi encontrado numa rua de San Pedro Sula. Tal como Thalia, foi assassinada à queima roupa, com uma bala na cabeça. Ao lado, um preservativo usado. Nos dias seguintes, as testemunhas da perseguição policial, Michelle Torres e Fergie Alicie, também foram assassinadas.
Não foram as únicas. Durante o golpe de Estado de 2009, uma “limpeza social” assassinou 15 mulheres transexuais no país. Todas da mesma forma: um tiro na cabeça. “Depois de 2009, qualquer pessoa podia matar-nos. A mensagem que deixou o golpe de Estado é que os corpos das pessoas LGBT+ não valiam nada e que ninguém os investigava”, denunciavam as dirigentes da associação Cattrachas à imprensa. Ainda hoje, o nível de impunidade é alarmante: os ativistas hondurenhos estimam que 90% dos crimes contra a comunidade nunca foram esclarecidos.
À semelhança de Thalia, o ativismo pelos direitos LGBT+ e pela luta contra o VIH tinham feito de Vicky Hernández uma figura pública nas Honduras. Era a porta-voz de uma das associações LGBT+ do país, o Coletivo Unidade Cor de Rosa, por quem dava a cara nas entrevistas aos meios de comunicação e nos encontros da sociedade civil com o governo.
A morte de Vicky desatou a fúria das companheiras que nunca deixaram de exigir justiça ao longo de doze intermináveis anos. Até que, perante a inação das autoridades, a organização Cattrachas denunciou o Estado hondurenho junto do Tribunal Interamericano de Direitos Humanos (TIDH). A sentença chegou, finalmente, em junho do ano passado: “Existem vários indícios da participação de agentes estatais [no assassinato], que apontam para uma responsabilidade do Estado pela violação do direito à vida e integridade de Vicky Hernández, ocorrida num contexto de violência contra as pessoas LGBT, e em particular contras as mulheres trans trabalhadoras sexuais.” Ao mesmo tempo, o TIDH sublinhou que, “tanto em vida como durante a investigação da sua morte (…), vulneraram-se os direitos de reconhecimento da personalidade jurídica e não discriminação e o direito à identidade de género de Vicky Hernández”.
O Estado não teve alternativa senão reconhecer, embora “parcialmente”, a responsabilidade por não ter feito “com a devida diligência a investigação do homicídio”. Um mea culpa tímido e difícil de engolir. Desde 2009, quando o regime atual se instalou no poder, 122 pessoas transgénero e 389 membros da comunidade LGBT+ foram assassinadas nas Honduras, segundo a associação Cattrachas. “Quem é o protagonista de todos os danos contra a comunidade de mulheres trans? É o mesmo Estado. Que diz que vela por nós e que nos protege, mas é quem nos mata”, acusava Thalia na entrevista a Reportar sin Miedo.
O discurso oficial confirmava esta violência de Estado. Em discursos públicos, Juan Orlando Hernández, presidente das Honduras entre 2014 e 27 de janeiro passado (e hoje assinalado pelos Estados Unidos por ligações com o narcotráfico) lançava-se repetida e furiosamente contra os defensores dos direitos das mulheres e pessoas LGTB+, acusando-os de serem “inimigos do Estado e da independência”.
Apesar de discursos de ódio, a condenação do TIDH ao Estado hondurenho trouxe alguma esperança aos ativistas. Entre as medidas impostas às Honduras estava a investigação de casos de violência contra as pessoas LGBT+. Também Thalia parecia acreditar que as coisas poderiam mudar. “Agora sim, vai haver justiça”, dizia. Meio ano depois, jazia morta, com uma bala na cabeça, na casa de madeira na encosta íngreme do monte Juana Laínez.
Caravanas para o norte
A morte de Thalia soltou ondas de choque a nível internacional. “[Este assassinato] causa um impacto muito preocupante, que prejudica o muito pouco valorizado trabalho dos defensores de direitos humanos nas Honduras”, considerou o Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (ACNUR). A organização aproveitou para ressaltar que, no país e na região, “as pessoas pertencentes à comunidade LGBT+ sofrem risco grave de deslocamento forçado devido à discriminação, perseguição e ameaças contra a sua integridade pessoal, devido à sua orientação sexual ou expressão de género”.
Com o comunicado, a ACNUR pinta um cenário sobejamente conhecido. O final violento de Thalia, de Vicky e de milhares de pessoas LGBT+ não é uma exceção à regra nem em Tegucigalpa, nem nas Honduras, muito menos na América Central. O observatório internacional Transgénero Europa (TGEU), que recolhe dados a nível mundial, considera o período de 1 de outubro de 2020 a 30 de setembro de 2021 como o mais mortífero para esta comunidade na América Latina, desde que tem registo. Brasil, México e Colômbia são responsáveis pela maioria dos 263 homicídios denunciados. Se recuarmos até janeiro 2008, um cálculo frio soma um total de 3157 assassinatos de pessoas transgénero na região.
As estatísticas evidenciam a perseguição sistemática da comunidade LGBT+ nesta zona do mundo. A sociedade exclui-a, os vazios legais privam-na de direitos. No chamado Triângulo Norte da América Central (El Salvador, Honduras e Guatemala), estas pessoas tornam-se fetiches de pandilhas. Grupos criminosos como os Mara Salvatrucha incluem o homicídio de gays e transexuais nos rituais de iniciação. Se não os matam, ameaçam-nos em esquemas de extorsão com pistola na cabeça. Como no caso de Vicky Hernández (e, teme-se, no de Thalia), o interesse das autoridades em resolver estes crimes é pouco ou nulo. A impunidade é regra.
Como sublinhou a ACNUR, para muitos, não há opção – há que fugir. Ameaçadas, mulheres transexuais lançam-se para o norte, diluídas nas caravanas migrantes rumo aos Estados Unidos. As histórias são repetitivamente trágicas. “Mataram a minha companheira e quinze dias depois, ameaçaram-me e obrigaram-me a sair do país. Disseram-me que se não me fosse embora, me matavam.” Lady Alexandra, hondurenha. “Quando queria começar a minha transição hormonal, comecei a receber ameaças de que se o fizesse, iam-me matar e cortar os peitos.” Loly Marceli, de El Salvador. “Assassinaram muitas amigas, agrediram outras. Por se trans, um rapaz quis-me agredir com uma faca e violar-me”. Alexa, hondurenha. Relatos numa reportagem de AJ+ na passagem da caravana de 2018 pela Cidade do México.
Quando esta caravana despertou o mundo para a migração em massa de hondurenhos, salvadorenhos e guatemaltecos, sobretudo, rumo aos EUA, visibilizou também a via cruz dos migrantes LGBT+. Nessa altura, gays, lésbicas, transexuais e transgénero centro-americanos em fuga começaram a organizar-se em coletivos ao longo da marcha. Assumiram publicamente uma identidade própria, protegeram-se entre si durante o caminho, onde continuavam expostos à violência e discriminação por parte dos outros migrantes.
Fronteiras cruzadas, levantaram a cabeça e fizeram-se notar. Empoderaram-se. Foram os primeiros a chegar a Tijuana, nessa caravana de 2018 que começou com pouco menos de 200 pessoas em San Pedro Sula, nas Honduras, e terminou com mais de seis mil na fronteira noroeste do México com os EUA.
Desde então, várias organizações e associações mexicanas e norte-americanas concentram-se no apoio a esta comunidade de migrantes. Criaram-se albergues exclusivos para pessoas LGBT+, como a Casa Arcoíris em Tijuana ou a Casa Migrantes Repetttrans, em Ciudad Juárez. Além de dar abrigo, dão seguimento a casos de deportações e ajudam a pedir asilo político nos EUA, o objetivo de todos os LGBT+ centro-americanos que escapam do pesadelo onde vivem. Como Alexa. “Nunca pensei ir para os EUA e ser migrante. Mas cada pessoa tem uma história. O meu sonho, e peço a Deus que se torne realidade, é ser uma pessoa livre, independente e ter trabalho para poder ajudar a minha mãe, que é o mais importante e sagrado que tenho na vida.”