Krik-krak, a arte dos contos no Haiti
É considerado um tesouro da cultura haitiana, que reflexa a sociedade do país caribenho. O krik-krak, a arte de contar advinhas ou contos (kont, em crioulo) é tradição viva que une e transcende gerações através da oralidade.
Nesta dinâmica, as histórias folclóricas e adivinhas apropriam-se de detalhes do dia-a-dia e captam a atenção de miúdos e adultos. Pelo relato divertido em si, e pela socialização que implica. Ao fim da tarde, quando o fresco lá fora contrasta com as casas abafadas, conviver nas ruas dos bairros faz parte do viver, não só haitiano, mas de muitos outros países tropicais. Esta é a hora perfeita para o krik-krak ou tim-tim, como também é conhecido.
A dinâmica é simples. Numa roda, o narrador atira um “Krik!”, ao qual os ouvintes respondem com um “Krak!”. O reptador continua. “Tim-tim?” E recebe a resposta “Bwa chèc”. Lança-se então uma adivinha ou conto.
“Veste-se branco para ficar em casa?”
Há que ser ágil e adivinhar o mais rápido possível. Se alguém responder “É a cama!”, temos um vencedor. Mas se depois de mil tentativas ninguém acertar, a assembleia reconhece a derrota com um sonoro “Mwen bwè pwa”.
Em “Assim falou o Tio”, livro essencial sobre o folclore e identidade do país, o antropólogo haitiano Jean Price-Mars indaga sobre a raiz deste pingue-pongue característico do krik-krak. “Esta tradição chega-nos diretamente da época colonial, (…), é própria dos marinheiros bretões (…) [mas] também da costa dos escravos [Golfo da Guiné], onde o narrador anuncia o seu relato por um ‘alo’, ao qual o auditório responde com outro ‘alo’”.
Influência africana, europeia? O autor não tem uma resposta concreta, mas uma coisa é certa: os haitianos apropriaram-se destas fórmulas e superaram-nas, acrescentando-lhes elementos. “[No Haiti], para obrigar o contador a relatar um número determinado de contos, depois de krik-krak vem outra interrogação: ‘Time, time?’ Segundo a disposição do narrador, este responde à demanda com ‘Madeira’. Ao que o auditório pergunta: ‘Quanto dar-lhe?’. A resposta final diz quantos contos vão ouvir essa noite: “Nada, 1, 2 ou mais”.
Sátira e sainete
A oralidade, conta Melissa Beralus em “Krik-krak! (e tim-tim!)”, “ocupa um lugar extremamente importante no Haiti, tanto que até mesmo o vodu, a religião mais popular, é esmagadoramente preservado através de tradições orais, incluindo uma forma estritamente oral de literatura chamada odyans”. Embora “o ritual social de contar histórias em torno de uma fogueira seja mais antigo do que a história em si, e o jogo de adivinhação de chamada e resposta haitiano esteja enraizado nos antigos modos africanos de contar histórias”, krik-krak destaca-se como um “tesouro único da cultura haitiana, e que reflete e ajuda a criar a sociedade haitiana”, indica. Com “toques de comédia”, “põe em perspetiva os modos de vida das classes mais baixas e das pessoas que vivem no campo, onde temas como propriedade, morte, herança e família muitas vezes ressurgem nas narrativas”, acrescenta Melissa Beralus.
O tom “descontraído e rocambolesco” das adivinhas e contos folclóricos haitianos, analisa por sua vez Jean Price-Mars, alternam “entre a epopeia, o drama”, e acima de tudo entre o “sainete e a sátira” – “são mais expressivos do nosso estado de ânimo” e retratam “o realismo e o pitoresco de personagens” do país insular.
Neste mundo “expresso em parábolas e sentenças”, os kontes “revestem-se frequentemente de um carácter simbólico”, indica o antropólogo. Para tal, seguem normas estritas de ambientação, “requerem do mistério da noite para arroupar de intenso o rimo da narração e situar a ação no reino do maravilhoso”. A “transgressão desta regra levaria a uma terrível sanção”, adverte. “É tradicional dizer que um conto em plena luz do dia pode causar a norte do pai ou da mãe de quem o relata (…) Os bashoto, povo da África Austral, dizem que se um conto é relatado de dia, cairá uma abóbora sobre a cabeça do narrador, ou a sua mãe transformar-se-á numa zebra.”
Imaginemos então o fim da tarde, princípio da noite. Um contador leva à cena “a natureza em pleno – céu, terra, homens, animais e vegetais”, numa velha parábola haitiana reproduzida em “Assim falava o Tio”.
Conhecem a aventura que teve o Macaco, certo dia?
Encavalitado no alto de uma árvore, à beira de um caminho, o Macaco observava a multidão de camponeses em direção ao mercado da aldeia.
Estavam todas as suas simpatias depositadas numa pobre mulher que, apesar de estar um pouco atrás do grupo, caminhava com passitos rápidos, diligentes. O Macaco talvez até sentia um pouco de pena, apesar de ser malicioso e atrevido. Pela cara da camponesa, adivinhava que ela pensava conseguir maravilhosos benefícios com a enorme abóbora que levava à cabeça.
E de que estava recheada a abóbora?
Esta era a pregunta que o Macaco se fazia. E a sua imaginação voava, enquanto a camponesa caminhava encurvada, devido ao peso da abóbora à cabeça.
Mas bom, mesmo por baixo do carvalho em que o Macaco, encavalitado, tentava averiguar o pensamento humano, a pobre mulher tropeçou numa pedra e a abóbora caiu e partiu-se, deixando cair os favos de mel dourado que continha.
– Meu Deus! Que desgraça! – disse a camponesa, desolada.
O Macaco ouviu e reteve as palavras. De duas, só conhecia uma.
Conhecia bem o bom Deus, a quem estava agradecido por o ter criado a ele, o Macaco, um pouco à semelhança do homem, quase como um subprimo. Mas até esse momento, ainda não conhecera a palavra desgraça.
Desceu então rapidamente do seu observatório, e sem perder tempo, apressou-se a provar essa coisa que parecia tão deliciosa. Cheirou-a e depois degustou-a…
– Caramba! É suculento – disse.
Nesse momento, o Macaco resolveu ir à procura do bom Deus para que o Criador lhe oferecesse um pouco de desgraça. Partiu. Caminhou, caminhou, atravessou muitas savanas até que, por fim, a noite caiu.
Chegou a uma porta fechada, por debaixo da qual se filtrava uma calidez misteriosa. Era o lugar sagrado, era o recinto terrível.
Detrás da porta ouviu-se “hossana”… Os anjos ficaram estupefactos com o passo temerário do Macaco.
Como Deus estava a conferenciar, foi o arcanjo São Miguel, nessa altura chefe do protocolo celestial, quem recebeu o augusto visitante e entregou-lhe, da parte do Pai Eterno, um pesado saco. Recomendou-lhe de maneira expressa e formal não abri-lo até chegar a meio de uma das savanas que o Macaco acabara de atravessar.
O Macaco, alegre, contente e entusiasmado, partiu.
Ainda mal tinha chegado ao sítio designado, satisfez a sua curiosidade.
Horror! O saco não tinha mais que um cão!
O Macaco saiu dali como alma que leva o diabo. Ai!! O cão, bom corredor, seguiu-o de perto, aquecendo com o seu alento o traseiro do curioso impertinente. Na verdade, foi uma corrida inenarrável no seu fantástico enfrentamento.
Por fim, graças a sábios estratagemas, o Macaco despistou o tão incómodo companheiro de viagem e chegou a casa de um hougan [sacerdote na religião vodu, curandeiro].
– Uff!! Doutor, por favor, dê-me algo que permita livrar o universo dessa ralé que é a raça dos cães. Veja o senhor… – e contou-lhe o seu infortúnio.
– Quero ajudar-te – replicou o hougan – É muito simples. Basta que me tragas “tal coisa de tal modo”…, de um cão, não importa qual, do primeiro que encontres. Entendes? E antes que o galo cante três vezes, garanto-te que não restará um cão, um só, sobre toda a terra.
– É só isso? Então está feito – disse o Macaco.
E imediatamente começou a sua campanha.
Dois dias, depois três, depois cinco passaram antes que o Macaco voltasse à casa do hougan, com um recipiente fechado.
O curandeiro destapou-o, cheirou o conteúdo e disse ao seu visitante:
– Ouve, meu amigo, “isto” tem não sei que perfume, que me parece familiar. Ah! Previno-te. Se “isto” vem de um cão, morrerão todos os cães; mas se “isto” vem de um macaco, morrerão todos os macacos.
– Por favor, doutor, por favor… O seu comentário preocupa-me. Na verdade, não estou seguro da rolha que o senhor acaba de abrir. Conceda-me uns minutos… e prometo que saberemos o que fazer.
O Macaco partiu, cheio de ansiedade e nunca mais voltou. E é por isso que ainda hoje, o cão e o macaco, dois irmãos em inteligência, continuam a ser inimigos irreconciliáveis.
Bouki e Ti Malice
Para além das parábolas, nos contos haitianos, há dois heróis inseparáveis: Bouki e Ti Malice. Desde tempos ancestrais habitam as palavras do país, com lições de moral e de bom comportamento. Segundo algumas fontes, os contos folclóricos de Bouki eram já contados no Gana, sendo Bouki uma hiena – transformada em homem no Haiti.
Bouki representa “a besta mansa, a força ininteligente e cordial”, e Ti Malice, “a astúcia”, explica Jean Price-Mars em “Assim falou o Tio”. Mas “há outra coisa”, alerta. E essa “coisa” tem a ver com representações raciais no próprio Haiti. “É provável que, historicamente falando, Bouki seja o tipo de ‘negro boçal’ (…) cuja suposta torpeza e estupidez eram objeto de inúmeras piadas e de implacáveis comentários de Ti Malice, personificação do ‘negro crioulo’, geralmente considerado mais manhoso e até um tanto ladino”.
Os dois são essenciais. “São os porta-vozes dos nossos problemas e das nossas tristezas, um e outro são significativos dos nossos hábitos de assimilação. (…) São, à sua maneira, o que a vida nos oferece em todo o mundo de estupidez, de vaidade pueril e de cautelosa habilidade. Um e outro são representativos de um estado de espírito muito próximo da natureza”, considera o autor.
Ai-Ai
Uma bela manhã, o tio Bouki andava pela estrada, quando o estômago começou a dar pontapés e a dançar – tinha muita fome! Enquanto corria para casa para preparar uma refeição, viu uma velha desdentada a comer na berma do caminho.
– Mmmm, isso parece delicioso – disse o tio Bouki – O que está a comer?
Distraída com o tio Bouki, a velha mordeu o lábio e gritou “Ai! Ai!”
Sem tempo a perder, o tio Bouki correu para o mercado em busca de um delicioso ai-ai para si. O pobre homem estava realmente com muita fome! Mas quando chegou ao mercado, os vendedores só se riam dele, porque ai-ai não existia!
– Estou com tanta fome, não consigo pensar em mais nada – disse o tio Bouki a Ti Malice quando voltou para casa – Tens algum ai-ai?
O Ti Malice queria dar uma lição ao tio Bouki. Juntou alguns objetos num saco e deu-o ao amigo.
– Aqui está o teu ai-ai, é o melhor que tenho.
O Tio Bouki tirou uma laranja da bolsa e disse:
– Não, não é isso que estou à procura.
Em seguida, tirou um ananás e apenas abanou a cabeça. Finalmente, no fundo do saco encontrou um pedaço de cato.
– Ai ai! Ai ai! – gritou o tio Bouki, enquanto os espinhos do cato arranhavam-lhe a pele. – Por que fizeste isso?
Ti Malice não conseguiu controlar uma gargalhada e respondeu-lhe:
– Pediste um pouco de ai-ai, e foi exatamente isso que te dei!