Bolívia, um Estado em golpe
Três da tarde em La Paz, quarta-feira, 26 de junho. Dezenas de militares tomam a Praça Murillo, no centro da capital boliviana. Um dos três blindados do exército na zona derruba a porta do Palácio Queimado, sede do governo boliviano.
De um dos tanques sai Juan José Zúñiga, destituído um dia antes do cargo de comandante-geral do Exército boliviano. Avança palácio adentro para tomar o poder. Na linha de defesa, o presidente boliviano, Luís Arce, o vice-presidente David Choquehuanca e parte do gabinete confrontam Zúñiga e os seus militares encapuçados.
Um presidente Arce encrespado, como mais-velho que ralha um miúdo, levanta a cabeça e alça a voz: “Cuidado! Estão a fazer um golpe contra o povo boliviano! Eu não vou deixar! Se se respeita como militar, retire todas as suas forças.” Nada acontece. “É uma ordem!”, reforça, com o braço estendido apontando para fora do palácio.
A tensão é palpável, o vídeo que correu o mundo expressa-a bem. Com a cara a poucos centímetros do rosto de Zúñiga, o presidente levanta o indicador e grita: “Aqui está o seu capitão!” ‘Voltem e levem toda a Polícia Militar para os seus quartéis neste momento’, ordenou novamente o presidente. O militar responde com uma cara de descontente – “não pode ser tanto desprezo” – e volta a negar a ordem.
“Vocês não me estão a ouvir?” Zúñiga nega, com um gesto. Luís Arce tira então o último ás da manga. Levanta o bastão presidencial e pergunta: “Sabe o que é isto?” À volta, uma multidão grita – “Respeite a democracia!”, “Luís (Arce) não está sozinho!”, “Fora os militares!”.
Em frente, na praça Murillo, um enxame de jornalistas e populares furam o cerco militar e fintam as bombas de gás lacrimogéneo que, ainda assim, ferem pelo menos 15 pessoas. A adrenalina e desnorte tomam conta do centro de La Paz. Com a cara fechada e boca em movimento como quem mastiga uma chiclete já sem sabor, depois do ralhete presidencial o general Zúñiga retira-se do Palácio Queimado. Ignora as perguntas dos media, cruza a praça e entra no blindado onde tinha chegado. Tipo nada.
Em questão de horas, o presidente Luís Arce designa as novas chefias das Forças Armadas. Sai depois ao balcão presidencial onde, já sem resistência golpista, se amontoam centenas de habitantes de La Paz. “Com vocês, com o povo, nunca vamos desistir. Ninguém pode tirar a democracia que conquistámos nas urnas e com o sangue do povo boliviano”, discursa (só mais tarde, levantaria a suspeita de “interesses internacionais” na intentona golpista neste país que tem as maiores reservas de lítio do mundo).
Os aplausos e gritos enchem a praça. A comunidade internacional refuta em uníssono o golpe falhado. Evo Morales denuncia-o. Até Jeanine Áñez, a presidente interina da Bolívia após o (outro) golpe de estado militar que impediu a tomada de posse de Evo, em 2019, arremete contra Zúñiga. Desde a cadeia, onde cumpre dez anos de prisão por ter assumido indevidamente a presidência durante a crise política de há seis anos, insurge-se no X contra o ato castrense.
Zúniga vs Evo Morales
As horas que se seguiram à tentativa falhada de golpe foram determinantes. O protagonista maior, Juan José Zúñiga, foi capturado em frente ao Estado-Maior do exército, abrindo passo à detenção de mais 20 pessoas. até agora. Entre estas, estão três comandantes das Forças Armadas.
Nas poucas palavras aos meios de comunicação, Zúñiga justificou o seu ataque ao Palácio Queimado com a “situação do país”. “Estamos a ouvir o grito do povo. Porque durante muitos anos, uma elite tomou conta do país. São vândalos, estão nas diferentes estruturas do Estado, estão a destruir a pátria. As Forças Armadas pretendem reestruturar a democracia”, balbuciou enquanto a Polícia o levava.
Na verdade, com estas declarações, o general golpista resumia meses, anos de um confronto crescente. Não com Luís Arce, que tentou depor, mas com o histórico Evo Morales. Em 2022, o ex-presidente boliviano e então líder do Movimento ao Socialismo (MAS), acusou Zúñiga de liderar o grupo castrense “Pachajchos” que, alegava, o perseguia permanentemente. Assinalamentos que o militar sempre negou.
Pouco tempo depois, em novembro de 2022, Luís Arce nomeava o general anti-Evo comandante-geral do Exército boliviano, decisão que ratificou em janeiro deste ano. Desde então, a tensão não parou de aumentar. Nas últimas semanas, Evo Morales chegou mesmo a acusar Zúñiga de o querer “eliminar fisicamente”.
Em resposta, na última segunda-feira, apenas dois dias antes do assalto ao Palácio Queimado, Juan José Zuñiga desqualificou as acusações numa entrevista televisiva e subiu o tom. Sobre a candidatura já anunciada de Evo Morales às presidenciais de 2025, metralhou: “Evo Morales está juridicamente inabilitado, a Constituição diz que não pode ter mais de dois mandatos e ele já foi ‘re-re-eleito’. O Exército e as Forças Armadas têm a missão de zelar pelo respeito e cumprimento da Constituição. Esse homem não pode mais ser presidente deste país”. “Deteria Evo Morales?”, perguntaram. “Se for necessário, penso que sim”, respondeu.
A eterna piñata de Zúñiga não demorou a responder. Nas redes sociais, Evo Morales assegurou que “o tipo de ameaças feitas pelo comandante-geral do Exército, não se admitem em democracia”. E que se essas palavras não fossem “desautorizadas pelo Governo e pelas unidades militares”, seriam a prova de que, “na verdade”, estariam a “autorizar um autogolpe”.
De mãos atadas, um dia depois da entrevista, o presidente Luís Arce destituiu Zúñiga. A jogada politicamente correta não sanou, no entanto, um mal-estar de muitos meses. Ao ratificar, há meio ano, o inimigo número um de Evo Morales como comandante do exército, o presidente boliviano abriu uma nova e violenta frente de batalha contra o seu antigo mentor. A caixa de Pandora estava mais aberta que nunca.
Luís Arce vs Evo Morales
Antigos amigos, aliados políticos e membros do mesmo governo (Luís Arce foi ministro da Economia de Evo Morales até 2017), em 2021 os dois políticos começaram a cavar um fosso gigantesco entre si, que só aumenta.
Em outubro de 2020, um ano depois do golpe que tirou Evo Morales do poder e do país, Arce converteu-se em Presidente da Bolívia. Com o regresso de Evo a La Paz, desde o exílio, a euforia logo deu lugar a uma crise interna do MAS. Em finais de 2021, a alegada pressão do antigo presidente para influir no governo do seu antigo ministro, começou a pôr em causa a autonomia de Arce enquanto presidente. O braço-de-ferro pelo poder real nas decisões do governo começou a dividir o partido oficialista entre os chamados “evistas” e “arcistas”.
O verniz estalou de vez em setembro de 2023. Às portas do congresso do MAS, Evo Morales anunciou a sua candidatura para um novo mandato presidencial nas eleições de 2025. “Convenceram-me, vou ser candidato, obrigaram-me, as pessoas querem isso”, garantiu. Dias depois, acusaria Arce de “tentar travar” as suas aspirações. “Comprovámos como o governo e a extrema-direita separatista coincidem em opor-se a esta candidatura promovida pelo povo”, escreveu na rede social X.
Alguns meses mais tarde, em novembro, a disputa Evo vs Arce subiu de tom. A recusa do atual presidente boliviano em participar no congresso do MAS em Cochabamba, valeu-lhe a expulsão do partido (ou autoexpulsão, como ficaria nas atas). Com ele, foram afastados o vice-presidente David Choquencahua e outros 28 militantes leais a Arce, alguns deles legisladores e membros do governo. Nesse congresso, Evo Morales foi confirmado com o único candidato desta formação política às presidenciais do próximo ano.
A profunda divisão do partido no poder, exponenciada pela cisão, meses antes, da Confederação Sindical Única de Trabalhadores Camponeses da Bolívia entre “evistas” e “arcistas”, detonou a perda da maioria de Arce no Congresso boliviano. A casa começou a ruir. Como explica o doutor em Ciência Política, Fernando Mayorga, à BBC Mundo, “a fratura do bloco governista fez com que parlamentares próximos a Morales avançassem em acordos com a oposição para bloquear decisões do Executivo ou censurar ministros, o que tem sido desconfortável para Arce há meses. Tudo isso levou o governo a acusar Morales de provocar um cenário de crise estrutural no país para “encurtar” o mandato de Arce.
Perante este cenário, em maio passado, Arce pediu às Forças Armadas (já então chefiadas pelo agora líder golpista Zúñiga) que o defendessem dos “personagens sinistros que buscam um golpe brando ou o encurtamento” do seu mandato presidencial – o que inclui não só a oposição, mas também (e sobretudo) os seguidores do ex-presidente Evo Morales.
Apenas três dias antes do golpe do general que prometeu proteger Arce, a ministra da Presidência, Maria Nela Prada, também carregou contra Evo. Em conferência de imprensa, acusou-o de “estar disposto a bloquear a economia e a convulsionar o país para impor a sua candidatura a bem ou a mal, como ele mesmo disse”.
Mais uma vez, o contra-ataque não tardou. “A verdadeira conspiração contra o governo está na incapacidade e corrupção dos seus funcionários. O povo precisa de confiança nas suas autoridades e de uma solução para os seus problemas”, respondeu Evo na conta de X.
Na semana passada, os acontecimentos na Praça Murillo só intensificaram este fogo cruzado. A cacofonia na Bolívia é tal que, ao ser detido, o ex-comandante das Forças Armadas acusou sem rodeios o atual presidente boliviano Arce de ter montado o show do golpe de estado para reforçar a posição política no país (segundo sondagens recentes, a popularidade do mandatário anda nos 18%, bem longe dos 55% de votos que o elegeram em 2020). “No domingo”, disse o general, “reuni-me com o presidente e ele disse-me que a situação [política] estava muito complicada. ‘Esta semana vai ser crucial, é preciso montar algo para aumentar a minha popularidade’, disse-me. Perguntei-lhe: tiramos os blindados [para a rua]? E ele respondeu: ‘Tira’”.
A faísca vomitou fogo. O governo refutou de imediato a versão de autogolpe, à medida que o cisma entre Arce e Evo ganhava força. Apoiantes do executivo acusaram Evo Morales de estar na origem do assalto ao Palácio Queimado. Já os defensores do ex-presidente repetiam a versão do general golpista e acusavam o governo de montar uma farsa.
Este fim-de-semana, no seu programa semanal, o próprio Evo Morales insistiu na versão de autogolpe. Segundo as suas fontes “dentro do próprio governo”, a suposta sublevação visava a instalação de uma junta militar para bloquear-lhe o caminho para as presidenciais de 2025. O plano só não se concretizou, assegurou, “pela pressão de um ministro”. “O presidente Luís Arce enganou e mentiu ao povo boliviano e ao mundo. É lamentável que se utilize uma questão tão sensível como a denúncia de um golpe. Perante esta realidade, tenho de pedir desculpa à comunidade internacional pelo alarme gerado e agradecer-lhe a sua solidariedade para com o nosso país. É importante que uma investigação completa e independente prove a veracidade deste facto”, afirmou.
“Não te enganes uma vez mais! Não te ponhas ao lado do fascismo”, replicou o presidente Luís Arce, que já dias antes, tinha dito ao jornal El Pais que “Evo Morales põe em dúvida o golpe militar falhado, devido às suas aspirações políticas pessoais”. Ontem, em entrevista ao meio La Jornada, insistiu que o assalto ao Palácio Queimado “foi um golpe militar falhado” movido pelos “interesses pelos nossos recursos naturais”. “[Este episódio] deixa muitos ensinamentos e o primeiro é que o inimigo principal nunca dorme”, comentou.
Ainda sobre Evo Morales, em declarações à AFP na semana passada, o presidente boliviano matizava: “[No dia do golpe falhado] liguei a Evo Morales a dizer-lhe que vinham por mim e que depois seguramente iam por ele, para que se resguardasse”. Reconheceu haver “diferenças com o companheiro Evo”, mas que estas “têm a ver com quem é o dono do instrumento político [MAS}: para nós, são as organizações sociais; para Evo, é ele o dono, e por isso os ataques” ao governo atual, considerou.
O milagre boliviano
Entre os que acreditam que houve, de fato, uma tentativa de golpe e os que garantem ter sido uma reles manobra de diversão, a polarização de uma Bolívia já por si dividida avança a passos largos. O cenário político, social e económico do país não ajuda.
A nível institucional, a Assembleia Legislativa está paralisada por decisão judicial e não há sessões plenárias desde há meio ano. Os episódios menos abonatórios sucedem-se. “Ainda há 15 dias, houve uma das maiores tensões no poder legislativo quando Arce esteve ausente do país para uma viagem e o seu vice-presidente teve que assumir o poder interinamente, deixando o Senado a um líder ligado a Evo Morales, que conseguiu aprovar leis que o governo de Arce queria manter sem efeito”, conta a analista Clarisa Demattei no site Infobae.
Mas é a economia, o grande calcanhar de Aquiles de Arce – o mesmo Arce que é, paradoxalmente, o pai do tão propalado “milagre económico boliviano” da última década, e que se desinfla agora dia após dia, sem controlo aparente. Desde março do ano passado, a grave escassez de dólares, provocada pela queda da produção de gás natural, fonte primordial das receitas do país, e pela estrondosa hecatombe das reservas internacionais do banco central, pôs em alerta uma Bolívia fortemente dependente de importação de produtos de consumo (cerca de 80%).
Bloqueios de estradas e manifestações pela subida de preços e pela falta de medicamentos e bens alimentares como arroz e tomate, têm tomado as cidades do país. “Em 2023, tivemos quase 200 dias de bloqueios, que prejudicaram importações e exportações”, contabiliza Claudia Pacheco, presidente do Colégio de Economistas de Santa Cruz (região, diga-se, altamente adversa aos governos do MAS).
A falta de combustível é outro fator grave de desestabilização. Os postos de abastecimento enchem-se de pessoas que tentam a sua sorte. “Há dias em que se vende gasóleo, mas noutros não. Às vezes tens que dormir nas bombas para conseguir alguma coisa”, disse um motorista à agência de notícias Reuters, citado pela BBC.
Reformas económicas recentes, como a flexibilização das restrições à exportação e a criação de um leilão de diesel para grandes produtores também não têm tido resultados convincentes, alertam economistas bolivianos.
Entretanto, com a tentativa de golpe de 26 de junho, o presidente Arce aproveitou a oportunidade para contrariar os seus críticos. “A Bolívia tem uma economia que cresce; uma economia em crise não cresce. Temos uma das taxas de inflação mais baixas da região. Argentina, Chile e outros países têm inflação, mas não se fala em crise”, disse. “O que há são problemas transitórios, como a falta de dólares e de combustível, que estamos a resolver. Em todas as economias há problemas, nenhum funciona em piloto automático”, sublinhou à imprensa.
Golpe ou não golpe, Evo Morales ou Luís Arce, as próximas semanas serão determinantes para trazer um pouco de luz e normalidade ao país plurinacional.