José Saramago, as cinzas e sangue de Chiapas
“Olá. Bom dia. Somos estudantes da Casa Montessori. Estudamos no quinto ano da primária e estamos muito contentes, porque estamos em festa. Não é todos os dias que se fazem cem anos. E Letras Portuguesas [da Universidade Nacional Autónoma do México] convidou-nos para celebrar os 100 anos do nascimento do escritor José Saramago, que está incluído no nosso livro de leitura com o texto “As Pequenas Memórias”. Muito obrigado por convidar-nos. ‘Obrigados’!”
Com esta introdução, alunos entre os 10 e 12 anos de uma escola da cidade mexicana de San Luís Potosí, norte desértico, homenageavam o escritor português. Cartolinas nas mãos dos pequenos soletravam: S A R A M A G O. Com ânimo, começaram, um a um, no espanhol cantado do México: “Nunca fui grande pescador. Usava, como qualquer outro rapaz da mesma idade e de posses tão modestas como eram as minhas, uma cana vulgar com o anzol, a chumbada e a boia de cortiça atados ao fio de pesca, nada que se parecesse com os artefactos modernos que por ali haveriam de aparecer mais tarde e que cheguei a ver em mãos de alguns amadores locais quando já era crescido e me havia deixado de ilusões piscatórias…”
O entranhado que está Saramago no México não é casualidade. O escritor não é mais um dos que, Nobel oblige, enche livros de texto pelo sonante do nome. O papel ativo e de denúncia que o escritor assumiu nos dias mais difíceis da luta zapatista, nos finais dos anos 90, fizeram de Saramago “um português mexicano”, como o apresentava publicamente o escritor e amigo entranhável Carlos Fuentes.
É esta “mexicanidade”, além da dimensão literária, que está hoje a ser comemorada por cá, com os 100 anos de Saramago como pano de fundo. Uma série de palestras, conferências e debates arrancaram a ritmo acelerado nas últimas semanas e vão dezembro adentro. Uma exposição itinerante, “José Saramago – A consistência dos sonhos”, leva-o por vários cantos e recantos.
Esta semana, na Feira Internacional do Livro de Guadalajara, uma das mais importantes da América Latina, uma cerimónia emotiva evocou Saramago. Pilar del Río, Marisol Shulz, a editora no México, a escritora colombiana Laura Restrepo e o primeiro vencedor do Prémio de LiteraturaJosé Saramago, o escritor Paulo José Miranda, marcaram presença.
A 5 de dezembro, a Universidade Nacional Autónoma do México, através da Cátedra Extraordinária José Saramago, lançará com o apoio do Instituto Camões “Saramagia”, uma compilação de memórias que relatam a passagem do escritor por este país, contada por jornalistas, escritores e amigos mexicanos.
E que memórias.
As cinzas dos índios
Saramago estava entre o milhão de pessoas que receberam o subcomandante Marcos na grande praça central da Cidade do México, o Zócalo, a 11 de março de 2001. Para os indígenas mexicanos, a ocupação deste lugar altamente simbólico tinha um significado incomensurável. Para Saramago também. “Cadernos de Lanzarote”: “[No Zócalo] conheci a exaltação, o pulsar da esperança em todo o corpo, a vontade de mudar para converter-me em algo melhor, menos egoísta, mais capaz de entrega (…) foi como se as cinzas de milhões de índios se tivessem desprendido dos túmulos e outra vez reencarnado”.
Por esses dias, Saramago estava emocionado. Num comício zapatista numa universidade da Cidade do México, nem 24 horas depois da marcha sobre o Zócalo, um abraço selou esta impressão. “Todos falámos, mas o que a gente queria era ouvir [o subcomandante Marcos]. O seu discurso foi breve, mas intenso, quase insuportável para o sistema emotivo de cada um. Quando tudo terminou fui abraçar Marcos e foi então que ele me disse ao ouvido, numa voz apenas sussurrada: ‘Não nos abandones’. Respondi-lhe no mesmo tom: ‘Teria que abandonar-me a mim mesmo para que isso sucedesse’”.
Estes vibrantes dias no coração da Cidade do México foram o cume de uma cumplicidade antiga, próxima e arriscada, de José Saramago com o movimento zapatista. Esta relação começara mais de uma década antes, com as ondas de choque de um massacre numa aldeia indígena tzotzil em Chiapas. A 22 de dezembro de 1997, um grupo paramilitar atacou o povoado de Acteal, disparando indiscriminadamente sobre a comunidade que orava dentro de uma igreja. 45 pessoas foram assassinadas.
Quando a notícia da tragédia chegou a Saramago, o escritor juntou-se imediatamente às vozes que condenaram a matança. Coincidência, por essa altura tinha um convite para participar no fórum “Geografia da novela”, na Cidade do México. Conta-se que, como condição para participar, exigiu que o levassem a Acteal.
O momento era tenso. O governo mexicano tinha blindado Chiapas a forasteiros. Sem nunca assumir a participação direta ou indireta no ataque a Acteal, deportava estrangeiros que denunciavam as atrocidades dos grupos paramilitares nas aldeias indígenas. Saramago estava ciente que desafiava o poder. “Vou a Chiapas”, insistiu na altura à Visão. “Já tem cinco séculos de existência este desprezo, essas humilhações, essas torturas e sinto que é meu dever de cidadão do mundo (assumo a retórica) escutar os gritos de dor que de ali saem. E também os seus protestos e as suas cóleras”.
Chiapas, a palavra
A 14 de março de 1998, entre ameaças mais ou menos veladas das autoridades mexicanas, que incluíram até disparos para o ar, segundo testemunhos, Saramago chegava a Acteal, na região rural dos Altos de Chiapas. Conheceu Gerónimo Vázquez, uma criança de quatro anos a quem os paramilitares amputaram quatro dedos durante o ataque. Conversou com sobreviventes da matança, visitou o campo de refugiados de Polhó e rondou o acampamento militar de Majomut nas proximidades da aldeia. “Se o ser humano não se comove onde está a dor, se não vai ao lugar onde emerge o protesto, então não está vivo, encontra-se morto”, disse na altura.
Os relatos sobre o massacre, contam, abalaram-no. Enquanto as palavras lhe disparavam à queima-roupa um cenário de horror, cobria a cara com as mãos para manter-se firme. No final, prometeu à população: “Venho para pôr as minhas palavras às vossas ordens.” “Se o escritor tem algum papel, é inquietar, e Chiapas é um bom motivo para nos inquietarmos”, acrescentaria mais tarde.
Poucas semanas depois, cumpriu a promessa. Ao regressar a Espanha, publicou em La Revista, do jornal espanhol El Mundo, o manifesto-testemunho “Todos somos Chiapas”. “Vi o horror”, assim começava o primeiro de muitos textos que publicou sobre o tema. “É difícil expressar o que se sente quando sabemos que estamos com os pés sobre o mesmo lugar onde há três meses assassinaram estas pessoas. Imaginava a cena… As pessoas a tentar escapar… os paramilitares a disparar à discrição… as mulheres e as crianças a gritar, fugindo entre os campos… o lamento dos feridos…”
Continuava: “Em Chiapas vive-se uma situação de guerra ou uma ocupação militar, que, no final, é quase o mesmo. Não é uma guerra no sentido comum, com uma frente e duas partes confrontadas. Eu apenas vi uma parte em confronto – o Exército e os paramilitares. A outra parte, as comunidades indígenas, não os estão a enfrentar, não têm meios. Estão rodeados, não têm comida nem água… Vivem em condições infra-humanas. São quase campos de concentração”.
A “força que se expressa com o olhar” da população de Acteal ante o terror assombraram Saramago. “Em Chiapas encontrei um mundo que não compreendo. O mundo onde o europeu não pode entrar facilmente. É como se me debruçasse sobre uma janela que dá a outro mundo e, apesar de o ter à minha frente, não o posso entender”.
“A palavra Chiapas não faltará nem um só dia da minha vida. Se temos consciência mas não a usamos para aproximar-nos do sofrimento, de que nos serve a consciência? Voltarei a Chiapas, voltarei.” Com estas palavras (sempre a palavra) tatuava-se a luta pela qual ainda hoje é recordado com carinho por um México que o celebra como seu.
Posfácio: “O Sangue em Chiapas”, José Saramago, Outros Cadernos, 19 de agosto de 2009
“Todo o sangue tem a sua história. Corre sem descanso no interior labiríntico do corpo e não perde o rumo nem o sentido, enrubesce de súbito o rosto e empalidece-o fugindo dele, irrompe bruscamente de um rasgão da pele, torna-se capa protetora de uma ferida, encharca campos de batalha e lugares de tortura, transforma-se em rio sobre o asfalto de uma estrada. O sangue nos guia, o sangue nos levanta, com o sangue dormimos e com o sangue despertamos, com o sangue nos perdemos e salvamos, com o sangue vivemos, com o sangue morremos. Torna-se leite e alimenta as crianças ao colo das mães, torna-se lágrima e chora sobre os assassinados, torna-se revolta e levanta um punho fechado e uma arma. O sangue serve-se dos olhos para ver, entender e julgar, serve-se das mãos para o trabalho e para o afago, serve-se dos pés para ir aonde o dever o mandou. O sangue é homem e é mulher, cobre-se de luto ou de festa, põe uma flor na cintura, e quando toma nomes que não são os seus é porque esses nomes pertencem a todos os que são do mesmo sangue. O sangue sabe muito, o sangue sabe o sangue que tem. Às vezes o sangue monta a cavalo e fuma cachimbo, às vezes olha com olhos secos porque a dor lhos secou, às vezes sorri com uma boca de longe e um sorriso de perto, às vezes esconde a cara mas deixa que a alma se mostre, às vezes implora a misericórdia de um muro mudo e cego, às vezes é um menino sangrando que vai levado em braços, às vezes desenha figuras vigilantes nas paredes das casas, às vezes é o olhar fixo dessas figuras, às vezes atam-no, às vezes desata-se, às vezes faz-se gigante para subir às muralhas, às vezes ferve, às vezes acalma-se, às vezes é como um incêndio que tudo abrasa, às vezes é uma luz quase suave, um suspiro, um sonho, um descansar a cabeça no ombro do sangue que está ao lado. Há sangues que até quando estão frios queimam. Esses sangues são eternos como a esperança.”