“Em nome da moral fazem-se guerras”, entrevista a Sarah Maldoror

Em 2008 Sarah Maldoror (Gers, 1929 – Paris, 2020) era convidada do Festival Internacional de Cinema (FIC) Luanda, num regresso a Angola muito emocionante.  O Festival abria com o seu filme Sambizanga com base na novela A vida verdadeira de Domingos Xavier de Luandino Vieira. Pedro Cardoso entrevistou-a.

 

A câmara de Sarah Maldoror captou os primórdios da luta pela libertação de países africanos, ao lado de nacionalistas como Mário Pinto de Andrade, seu marido, Amílcar Cabral ou Agostinho Neto. Muitas histórias para contar por uma mulher franzina que ainda hoje fala com paixão e força das suas convicções.

Sarah Maldoror Sarah Maldoror

Greg Germer, comediante francês e um seu amigo antigo, classificou-a de “guerreira” misteriosa. Assume-se como tal?

Depende do que está atrás das palavras. A guerra é detestável. Guerreira das ideias sim, do combate não. Todos somos guerreiros, homens ou mulheres. Assumo-o activamente. 

Uma batalha que remonta a 1956, ano em que fundou, em Paris, o grupo de teatro “Les Griotes”. Através das adaptações de Jean-Paul Sartre e Aimé Cesaire promoviam, num contexto algo desfavorável, a negritude.

Em África temos escritores, homens de teatro, mas somos nós que temos que defender a nossa cultura. Mas uma cultura sem fronteiras. Na altura encenávamos alguns autores, unicamente porque eram negros, sem ter em conta nada mais, o que por si só era um absurdo, claro.

Uma forma de afirmação?

Mais do que isso. Na época apercebemo-nos que individualmente não faríamos nada e que tínhamos que aprender, fazendo teatro. Há histórias muito curiosas desse tempo, que demonstram esse espírito do colectivo. A dada altura, encenámos Sartre, mas não lhe pedimos autorização. Até que recebemos uma carta a exigir que pagássemos os direitos de autor. Não me recordo quanto devíamos, mas escrevemos então ao Sartre, pedimos-lhe desculpas, porque não sabíamos que tínhamos de pedir autorização e dissemos que não tínhamos dinheiro para lhe pagar, porque actuávamos de graça para os estudantes. Jean Paul respondeu e enviou-nos um cheque para pagar os direitos. É soberbo.

Frequentou a Academia de Cinema de Moscovo. Como surgiu o convite?

Estava na Guiné Conacri. Os soviéticos davam bolsas e eu consegui aceder a uma. Na altura tinha a ideia que a União Soviética era o paraíso, mas quando lá cheguei descobri o racismo, que não pensava que existisse. Pensei: regresso ou fico? Decidi ir-me embora só depois de aprender.

Foi depois desta experiência na ex-URSS que começou a filmar as lutas pela independência africanas. Qual foi o impulso?

Ter conhecido o Mário [Pinto de Andrade] foi importante, porque antes não tinha contacto com esta realidade. Quando voltei de Moscovo, falava-se imenso da guerra do Vietname, mas nunca das lutas africanas. Então pensei “vou fazer um filme”. Primeiro foi sobre a tortura, o Monangambé (1971). 

Revelou uma vez que veio para África a pensar que tudo seria extraordinário, mas que foi “terrível”. Porquê e porque é que continuou?

Temos que fazer escolhas. Sou de Guadalupe, faço parte dos escravos que foram enviados para lá. Sou africana. 

Mais uma vez a questão da identidade, premente em si.

Sempre convivi com este problema da mestiçagem. Um mestiço pode ser um africano que defende uma causa. Mas também aprendi com a minha experiência que não devemos lutar pela moral. Em nome da moral fazem-se guerras. Quando me falam de moral eu calo-me. O que é a moral? É preciso antes falar de respeito.

O seu percurso enquanto realizadora, por África, passou pela Guiné Bissau, Cabo Verde, Tunísia e Senegal. Porquê estes países?

Onde me recebiam eu fazia os meus filmes. Afinal de contas, o que é uma fronteira? Primeiro fiz Des fusils pour Banta (1970), sobre a Guiné Bissau. 

Nessa altura teve um problema com um militar argelino, que vos apoiava na gravação. Por causa da sua “boca grande”, como disse um dia. O que se passou?

Estávamos na Guiné, para gravar o filme, quando [Amílcar] Cabral me disse: “tu vais embora amanhã para o Maqui, e nós vamos depois”. Mas porque é que não vamos juntos? Estávamos em guerra e a Argélia tinha disponibilizado militares para proteger a equipa de filmagem. Eu lá fui, mas cinco dias depois ninguém tinha vindo, nem Cabral, nem militares. Quando ele chegou, disse-me que toda a equipa de cineastas e militares argelinos que tinha vindo para me apoiar já tinham voltado para a Argélia. Passei-me da cabeça. Soube mais tarde que quando esse grupo voltou à Argélia foi preso, porque tinham desonrado o exército do país. Mandaram então outra equipa. Devemos muito aos argelinos, porque nos permitiram começar as lutas. Estou muito feliz e orgulhosos da ajuda deles. Mas eu conheço os homens, e os homens também têm medo.

Os contactos com os movimentos de libertação eram feitos através de Mário Pinto de Andrade?

Sim. Mas quando chegávamos ao local das filmagens, tínhamos que fazer todo um trabalho de sensibilização junto dos guerrilheiros e da população. Cabral dizia-me: “podes até não concordar comigo, mas tens que respeitar a luta e os que a fazem”. Sempre respeitei esses guerrilheiros. Não estavam com a família e tratavam-nos com carinho e simpatia. Na Guiné, por exemplo, a equipa de cinema tinha uma alimentação à parte. Espantei-me muito, porque ali, no meio do mato, havia tudo – café, chá, etc. Um dia visitámos uma escola e acabámos por deixar lá toda essa “comida especial” que nos era destinada. Tudo menos o café! (risos)

Quem financiava os seus filmes?

O governo e instituições francesas, principalmente. Faziam isso porque não era colónia deles. E agora que quero fazer um filme sobre a escravatura não me dão dinheiro, por isso é que vamos pedir a Angola.

Como eram recebidos os seus filmes pelo público?

Eram bem recebidos, porque retratavam o quotidiano. Mostravam a luta dos guerrilheiros, sem os transformar em heróis, mostrava a morte e a tortura, a angústia das mulheres que não tinham que dar de comer aos filhos. Quando fazemos um filme é importante não esquecer o dia-a-dia. 

Porque é que optou pela ficção para retratar realidades?

Penso que todos o filme só funcoina se tem uma história. Hoje os combates são todos iguais.

Como se posicionava eticamente e ideologicamente perante as realidades que captava?

Digamos que eu era comunista (risos).

Em termos de imagem, os seus filmes são muito fortes. É a tentativa da vertigem?

O cinema é o sonho. Se mostro uma criança com fome, não quero que tenham piedade dele, porque ele ainda um ser vivo, ainda. Tem um olhar, um gesto. É importante fazer passar primeiro a vida da personagem. Independentemente do fim que escolhemos para o filme, é essencial dar espaço para as pessoas sonharem.

Ao mesmo tempo, as metáforas. Na curta-metragem “Monangambé”, há uma conversa entre uma pessoa e um lagarto.

É a metáfora da solidão completa. O lagarto era o único ser vivo com quem aquela personagem podia falar sobre liberdade.

Gravou o conhecido filme “Sambizanga” em 1972, numa altura em que as divergências entre Mário Pinto de Andrade e Agostinho Neto eram já claras. Há quem diga que esta obra é um olhar para trás, até 1961, mostrando um MPLA supostamente melhor e mais idealista. Concorda?

Independentemente do filme: No início dos movimentos de libertação ninguém era chefe. Era um grupo de ideias, a que pertenciam figuras como Viriato [da Cruz], Lúcio Lara, Marcelino [dos Santos]. Era uma luta de todas as colónias portuguesas com o objectivo único da independência. O Mário nunca foi um chefe, não gostava disso. Era um intelectual, em primeiro lugar, que defendia uma causa. Quando [Agostinho] Neto sai da prisão era um homem quase acabado, o que é normal, porque a prisão rompe qualquer pessoa por dentro. Mas a fraqueza do MPLA foi a questão de “tu és mestiço, tu não és mestiço”. A fraqueza de não ter dito, como Barack Obama que “todos juntos podemos trabalhar”. Por isso talvez essa interpretação de um filme sobre um tempo mais “idealista”.

Participaram no “Sambizanga” militantes do MPLA que estavam no Congo Brazaville e congoleses de movimentos que apoiavam o partido. Como fez para organizar todas aquelas pessoas?

O MPLA pôs toda a estrutura à minha disposição. Explicámos aos militantes que este filme era importante, porque ia incidir sobre Angola. Expliquei-lhes o que era o cinema e o que queria do filme. Todos participaram sem hesitar.  

“Sambizanga” relata a busca de uma mulher pelo seu marido, preso por razões políticas. É uma visão feminista?

O filme mostra que as mulheres também participaram na luta. Mulheres com filhos nos braços, que lhes tinham que explicar porque é que o pai partiu, quais os riscos e a própria realidade. 

Nunca pensou em fazer um filme sobre os outros movimentos, como a FNLA ou a UNITA?

Não, porque não os compreendia. Não conhecia a sua luta, nem a sua forma de actuar. 

Se fizesse um novo filme sobre Angola, qual seria a perspectiva?

Começaria pela Rainha Jinga, a primeira angolana independente, e terminaria com Mário Pinto de Andrade.

Não viria até aos dias de hoje?

Num trabalho sobre a fase seguinte poderia falar sobre a educação. Enquanto todas as crianças não forem à escola, isto não vai funcionar. Escola, escola, escola! Mas não para fazer intelectuais secos que desprezem as pessoas e não falem para todos. Pensa que Obama estaria na Casa Branca se não tivesse estudado e se não tivesse trabalhado com os que não têm nada? Ele é um exemplo para toda a África. A ideia viva de que podemos estudar nas melhores universidades, mas nunca nos devemos esquecer de estar ao lado do povo dos guetos. Essa é a força de Obama.

E um documentário sobre o MPLA de hoje?

Só com a condição de me darem um colete à prova de bala.

Porquê?

(risos)

“Mário era um combatente de espírito”

A figura de Mário Pinto de Andrade surgiu na sua vida em Paris. Como o viu então, enquanto político e intelectual?

As pessoas ignoram muitas vezes que, no início, quer seja Mário, Viriato, Marcelino ou Cabral, eram todos poetas. Tinham urgência em escrever. O próprio MPLA era, antes de mais, um movimento de homens de letras. É pena que isso se esqueceu. Em relação ao Mário, não se pode separar a dimensão política da sua dimensão intelectual, embora tenham também alguma autonomia. Mas ele não era um combatente de armas. Era um combatente do espírito. Troçavam dele porque não ia no Maqui. Ele foi, mas não era feito para aquilo, era incapaz de matar. 

Enquanto homem político, onde acertou e onde falhou?

Cometeu erros, mas é para mim difícil apontá-los. Ele era um diplomata nato e só avançava depois de deliberar bem sobre as situações. Deixei de entender o que se passava quando o começaram a criticar porque ele era mestiço. Para mim ele era uma africano e basta. 

Disse uma vez, no documentário “Nostalgia da Utopia”, que não há solidariedade na política, que o único que conta é a carreira. Foi isso que levou ao exílio de Mário Pinto de Andrade?

Isso acontece na África de hoje, onde o único que conta é a carreira, o dinheiro. Naquela época era diferente, o que importava realmente era a liberdade. Essa é a grande diferença. É essa nova atitude que faz, por exemplo, com que a imigração para os países da Europa seja inaceitável. África devia ser auto-sustentável. 

Como viveu ele toda a fase conturbada do exílio, depois de 1975?

Como qualquer pessoa que vive exilada. Lembro-me que a primeira recepção que eles receberam foi em Marrocos. Na altura o Rei Mohamed V disse-lhes simplesmente para nunca aceitarem o exílio, independentemente das divergências entre eles, que pudessem haver. 

Isso acabou por não acontecer.

O que conta, para mim, é que Angola alcançou a independência. Vejo muita miséria, mas apesar de todas as disputas e fracassos, o país chegou a um entendimento. 

A independência era o objectivo final ou o objectivo primeiro?

Era o objectivo primeiro. África pertence-nos, somos africanos e vamos afirmarmo-nos. Era intolerável não podermo-nos reunir ou aprender. Não podíamos aceitar sermos tratados como sub-homens.

Qual o peso que Mário tem actualmente? 

Creio que o Mário vai ter importância daqui a 10 anos quando os angolanos escreverem verdadeiramente a história. Quando medirão os sacrifícios e os esforços do próprio movimento. Nessa altura toda a sua dimensão – política e intelectual – será reconhecida. Todos esses primeiros combatentes, todos, têm direito ao nosso respeito eterno. Podemos opinar tudo o que queremos de Mário Pinto de Andrade, menos a sua integridade intelectual ao longo de toda a história do MPLA. Morreu como se devia – na maior pobreza. Morreu sem um centavo, não deixou nada às filhas. Mas era dono de uma honestidade e rectidão fora do comum. 

Há resistências a esse reconhecimento?

Não vivo em Angola, por isso não o posso afirmar. Mas cito Dumas, quando diz que “a história deve ser escrita por nós, para nós e para vós”.

 

Novo Jornal, 28/11/2008.

por Pedro Cardoso
Cara a cara | 17 Agosto 2021 | África, Agostinho Neto, Amílcar Cabral, cinema, cultura, Mário Pinto de Andrade, memórias, mpla, Sarah Maldoror, teatro