Aruká, o último guerreiro
Os números não contam o choro da selva. Morreu o último Juma, o último guerreiro de um povo arrasado por pestes e pelos homens no que é hoje o Brasil. O velho Aruká não resistiu a este coronavírus que subiu os rios da Amazónia, desde a grande cidade até aos confins da sua maloca. A doença e vírus estranhos continuam a dizimar os indígenas da América Latina. Século após século, num ciclo interminável de descaso e solidão.
Foi na quarta-feira, 17 de fevereiro, quando Aruká se uniu aos antepassados do povo Juma. Não se sabe ao certo quantos anos tinha, “entre 86 e 90”, diz a BBC Brasil. Números que não importam muito, na verdade. Aruká era o último varão deste povo da Amazónia, no norte do Brasil. O coronavírus apanhou-o na sua aldeia isolada do mundo pestilento. Supostamente.
A pandemia que aterra o mundo foi mais uma para o velho líder de uma tribo que tinha 15 mil pessoas no início do século XX, segundo dados oficiais. Pouco a pouco, mas sistematicamente, os Juma foram sendo exterminados pelos vírus das gentes vindas da “terra dos brancos”. E pelas balas. Entre 1940 e 1964, conta a BBC, os massacres sucederam-se, com os interesses da borracha a metralharem a tribo. Nos inícios de 1990, apenas seis pessoas sobreviviam. Com a morte do ancião, restam três. A filha primogénita Borehá, assume agora a liderança do grupo, rompendo a tradição de cacique homem sucede a cacique homem.
Durante décadas, Aruká escapou ao genocídio, mas a dor da alma fragilizava-o. “Ele era um guerreiro. Contava histórias das brigas com os seringueiros, de como, quando atacaram, o povo Juma fugiu ou atacou de volta”, conta à BBC o fotógrafo Gabriel Uchida. “Ele era forte, firme, mas sentia essa solidão, de ser só ele e as três filhas. Mesmo assim, continuava a praticar as coisas da cultura dele.” Esta força tornou-o numa figura incontornável para os povos da região, que o tratavam por amóe, um título honorável.
Em 1998, as autoridades levaram Aruká e a família para terras indígenas de um povo irmão, os Uru-eu-wau-wau, Foram tempos difíceis em que o velho guerreiro caiu numa depressão profunda. O exílio forçado arrastar-se-ia por dez anos. Em 2008, as autoridades deixaram os Juma regressar à terra ancestral.
Luciana França, professora de Antropologia da Universidade Federal do Oeste do Pará, acompanhou este regresso. Conta: “Pouco a pouco, e não sem alguma dificuldade, eles iam reconhecendo as curvas do rio Açuã e relembrando os caminhos por onde passaram. Enquanto desembarcávamos nossas coisas e preparávamos o acampamento, Aruká, sem demora, embrenhou-se na mata como se quisesse ver com os próprios olhos a terra que havia deixado para trás. Até a expressão quase sempre triste de seu rosto parecia mais aliviada. Quando foi para a terra dele, desabrochou.”
Para chegar ao território dos Juma, são cerca de quatro horas de viagem desde Porto Velho, estado brasileiro de Rondônia, até à margem do rio Açuã, seguidas de duas horas de barco. “Quando chegou”, continua Luciana França, “uma das primeiras coisas que Aruká fez foi ir até o local onde sua esposa estava enterrada. Ali, entoou seu ‘ajapyryty’, o choro ritual repleto de emoção para lembrar e homenagear os mortos. Na primeira noite em que dormimos lá, cada um na sua rede, acampando no mato, um começava a chorar. E outro chorava também.”
O velho Aruká lutou agora a última batalha, lado-a-lado com tantos índios brasileiros esquecidos pelo governo de Bolsonaro. Os números oficiais dizem que 567 indígenas morreram de coronavírus no Brasil. As associações dos povos nativos dizem que são 970. Num comunicado pela morte de Aruká, mostram uma revolta desmedida. Criticam o descaso “criminoso” do governo brasileiro pelo destino dos indígenas em época de pandemia. Sem receio, acusam: “O Governo assassinou-o”.
Reagir e sobreviver
A morte silenciosa destas comunidades no Brasil e na América Latina lembra uma história velha. A varicela e outras doenças trazidas pelos europeus, depois da chegada de Colombo, provocaram um esquecido holocausto indígena. Os números do genocídio alternam segundo a fonte, mas crê-se que, menos de duzentos anos depois da chegada de espanhóis e portugueses, os mortos ascendiam a 60 milhões. A maior causa de morte foram as doenças.
Em tempos de novas pestes, uma vez mais se expõe a vulnerabilidade destas gentes. Não são prioridade para os governos dos países “modernos” onde foram encaixotados. Mas os tempos são outros. Os indígenas já não esperam por governos e congressos e senados. Os indígenas latino-americanos atuam.
A própria aldeia de Aruká é um exemplo. Quando a pandemia se agravou, o povoado isolou-se. Qualquer visitante tinha de passar por um controlo à entrada, fazer um teste de coronavírus e entrar em quarentena. Este auto-isolamento replicou-se em múltiplas comunidades em toda a América Latina. Panamá, Guatemala, Chile e Argentina; México, Costa Rica, Peru e Nicarágua. Em todos os lados as aldeias indígenas fecharam-se sobre si mesmas para evitar a entrada de forasteiros infetados pela doença da moda.
As ações multiplicam-se e vão mais além do óbvio. Se os materiais informativos e de proteção não chegam ou são escassos, então há que produzi-los. Muito povos estão a criar os seus próprios panfletos nas línguas nativas, como descreve um relatório da Comissão Económica para a América Latina e Caraíbas sobre o tema. As rádios comunitárias têm sido essenciais para difundir informação preventiva sobre a pandemia. Para visibilizar o efeito do coronavírus nas comunidades indígenas, os vários povos organizam-se para contabilizar os seus doentes e mortos. Uma achega importante, numa altura em que os governos constantemente os eclipsam das cifras oficiais.
Para combater a escassez de alimentos provocada pelo auto-isolamento, em vários países criam-se redes de cooperação e de intercâmbio direto de produtos. “O povo ajuda oi povo”, diz-se no Peru. E se não chegam medicamentos, as comunidades resgatam os conhecimentos da medicina tradicional. No Equador e no Peru, por exemplo, publicaram-se compêndios de receitas com ervas medicinais antigas. Alguns povos criaram até centros de armazenamento de plantas para elaborar as fórmulas que podem aliviar os sintomas dos seus doentes. Na Bolívia, as parteiras indígenas tomam um papel de destaque, já que as mulheres das aldeias remotas evitam os hospitais públicos onde o risco de infeção é maior.
Além do corpo, a chamada “defesa espiritual” é um dos eixos principais da ação contra o vírus que veio de longe. Entre os mapuches do Chile, as cerimónias e saudações refletem sobre questões como soberania alimentar, património sanitário ancestral e medicina tradicional.
Nada disto sai à luz num mundo virado para o próprio umbigo. Como sempre, os indígenas são sombras, os pobres que nem vale a pena recordar para não doer na consciência. Enquanto nas grandes cidades – as modernas, as evoluídas, as informadas – todos se fecham em casa esperando que tudo passe numa passividade doentia, os invisíveis reagem e atuam. Não por serem diferentes. É que para eles, a paralisia não é um estado metafórico, é a morte em si mesma.
Salve a vida. Salve todos eles. Salve amoé Aruká!